Faltando apenas seis meses para o início da transição da mais ambiciosa reforma tributária da história recente do País, o Brasil se encontra em um ponto curioso da jornada: o trem da mudança já está apitando, mas os trilhos seguem em obras — e em alguns trechos, nem existem.
Apesar da aprovação da Emenda Constitucional 132/2023 e da sanção da primeira lei complementar (LC 214/2025), o cenário atual é de indefinições críticas, disputas institucionais, atrasos operacionais e um setor privado navegando em meio a dúvidas e custos crescentes. O cronograma já começou. A segurança jurídica, nem tanto.
A partir de janeiro de 2026, empresas deverão começar a cumprir obrigações acessórias relacionadas à CBS e ao IBS. Os testes com 500 empresas já foram iniciados, mas os regulamentos definitivos ainda não foram editados. O Comitê Gestor do IBS está incompleto, pois a disputa entre CNM e FNP impede a representação municipal, o que, segundo juristas, torna o órgão inconstitucional em sua composição atual.
Isso não é um detalhe técnico. O Comitê será responsável por regulamentar, arrecadar e fiscalizar o IBS. Sem sua instalação plena, corremos o risco de paralisar pontos centrais da transição.
Um IVA brasileiro que não é IVA: mais um jabuticaba fiscal?
Enquanto o mundo adota modelos simplificados de IVA único, o Brasil aposta em um sistema dual (IBS + CBS), com arrecadação descentralizada e regulamentações distintas. O resultado é um emaranhado de competências e riscos de sobreposição, ainda que a promessa oficial seja de harmonização. Bernard Appy garante que não haverá dupla fiscalização, mas o arcabouço processual ainda é frágil, e até o CNJ já estuda alternativas para o contencioso — inclusive com sugestões que o próprio STJ considera “intransponíveis”.
Empresas em alerta: a conta (e o caos) já começaram a chegar.
As obrigações de 2026 exigem uma reestruturação tecnológica e contábil complexa. A convivência de dois sistemas entre 2026 e 2033 — o velho e o novo — exigirá escrituração paralela, adaptações nos ERPs e revisão completa de contratos e prazos.
O setor de serviços será especialmente penalizado, com alíquotas subindo para cerca de 28%. Empresas que têm como principal insumo o fator humano terão pouco ou nenhum crédito a compensar. Em outras palavras: tributo cheio, sem anestesia.
Split payment: promessa de solução ou bomba-relógio? O modelo de split payment — cobrança automática do tributo no momento do pagamento — está em fase embrionária e será facultativo. Mas pode alterar radicalmente o fluxo de caixa das empresas. Pequenas e médias, com menos acesso a crédito e margens apertadas, serão especialmente vulneráveis.
Um país que reforma sem reformar
Talvez o ponto mais crítico da discussão seja o seguinte: a reforma tributária muda a forma de arrecadar, mas não enfrenta o verdadeiro problema da máquina pública brasileira — os gastos obrigatórios e a rigidez orçamentária.
De que adianta modernizar a receita se não há coragem para revisar as despesas? Estamos trocando o sistema de cobrança sem alterar o sistema de consumo do próprio Estado.
A manutenção de um orçamento engessado, vinculado à indexações como o salário mínimo, continuará pressionando o fiscal. A reforma, se não vier acompanhada de um enxugamento estrutural do gasto público, será apenas uma maquiagem — com um tom mais moderno, mas ainda disfarçando as deformações de sempre.
Conclusão: a janela de oportunidade está se fechando
A transição já começou, quer o setor público e privado estejam prontos ou não. Os riscos jurídicos, operacionais e econômicos são reais e crescentes. Sem segurança jurídica, sem previsibilidade nas alíquotas e sem estrutura funcional de governança fiscal, a reforma corre o risco de ser mais um capítulo da longa tradição brasileira de “modernizações inconclusas”.
Se quisermos realmente simplificar, desburocratizar e promover justiça fiscal, a hora é agora. Mas isso exige mais do que sistemas eletrônicos e novas nomenclaturas. Exige coragem política, reforma do gasto público e compromisso com um Estado que custe menos e entregue mais.
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